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Uma millenium entre os zoomers

Uma millenium entre os zoomers 
uma incursão na noite belo-horizontina que acabou se tornando um divisor de águas na maneira como vejo a geração Z

Não sei exatamente o que imaginava quando me chamaram para um karaokê. Talvez um mix de O Casamento do Meu Melhor Amigo com Lost in Translation. Quanto ao público, também não sei o que esperava, mas não era o que acabei encontrando por lá – definitivamente. O lugar fica na parte baixa da Savassi, num calçadão como qualquer outro, mas um pouco mais decadente para os padrões centro-sul. Um segurança fica na porta, sentado num banquinho alto, e pede para olhar as nossas identidades. Imaginei que ele pediria o meu documento, como sempre pedem, mas ele estava mais preocupado com a idade da minha amiga. O que me fez pensar que, talvez, a minha carinha de menina tenha finalmente me abandonado. Subimos uma escada lateral larga até o segundo andar, que a primeira vista parecia um enorme salão de festas de condomínio, com pisos de cerâmica barato e mesas de plástico a perder de vista. Logo à esquerda, na entrada, um balcão simples com o caixa e as bebidas. No meio do salão, uma televisão simples de no máximo 50” passando imagens de cachorrinhos em cestos de vime e vastos campos verdes – todas imagens nostálgicas das festas em família de alguém que cresceu no final dos anos 90, início dos anos 2000. A mesma praça, os mesmos bancos, as mesmas flores, o mesmo jardim – infelizmente a geração Z não vai pegar a referência, mas falemos sobre isso mais tarde.

E de toda a enxurrada de símbolos que custei a dar conta, tinha uma ainda mais inacreditável: um homem, provavelmente beirando os seus cinquenta anos, cantando. Ok, isso não deveria ser tão impressionante num karaokê. Só que ele estava sozinho no salão, com a exceção dos funcionários e, bem, de duas jovens mulheres cansadas e desesperadas por uma bebida. E o querido nos presenteou com uma playlist variada: Bonnie Tyler, ABBA, Lady Gaga. Foi uma canção seguida da outra num fôlego impressionante de alguém que parecia ter acabado de sair de um relacionamento curto, mas avassalador. Dava pra sentir em cada nota desafinada de Total Eclipse of the Heart. Foi muito tocante, até perceber que ele não era um cantor qualquer, mas o dono – ou gerente, não sei ao certo – do estabelecimento. Pessoas chegavam e iam direto cumprimentá-lo – sem se abalar na performance. E a sua proeza artística não acabava aí, porque em determinado momento ele passou a deslizar pelo salão com o microfone sem fio enquanto abria janelas, ligava ventiladores, espalhava cinzeiros pelas mesas. Stop calling, stop calling, I don't wanna talk anymore. E ligava a luz colorida. E revisava os refletores. Nem Lady Gaga se esforçou tanto cantando o refrão dessa música – música que, por sinal, passou batida pela minha mesa (mas também falemos sobre isso mais tarde).

Antes de prosseguir, acho que vale mencionar como acabei num karaokê numa quinta à noite – a nova sexta em BH. Acontece que fui abandonada pelos meus amigos nessa cidade quente e rumo à gentrificação total do centro. Minha amiga mais antiga voltou para a nossa cidade natal para fundar a melhor empresa de designer do mundo; meu melhor amigo foi realizar o sonho de ser o brasileiro mais francês em Paris, com direito a mestrado na Sorbonne e tudo – meu orgulho; minhas duas queridas amigas, as irmãs maravilhosas, também voltaram para a cidade natal, e eu fiquei aqui, a Deus dará, nesse mar de barzinhos e álcool que são extremamente convidativos mas com o porém mais paradoxal de todos: a capital do estado mais receptivo do país abriga as pessoas menos receptivas do país. Se você se deparar com algum belo-horizontino simpático saiba que provavelmente não é um belo-horizontino. É um mineiro de outra parte do estado. Ou até é um belo-horizontino por nascimento, mas que na primeira oportunidade os pais levaram pro interior pra criança pegar um tantinho de simpatia. Porque eita povinho metido a besta. E, sim, tenho dez anos de local de fala pra atestar isso com todas as minhas forças. Pois bem, essa cidade sem amigos me deixou a um passo de configurar o Bumble para colocar num raio de 15km qualquer pessoa disposta a uma amizade sincera, sem beijos ou sexo. Só amizade. O que seria ainda mais triste do que sentar num bar sozinha.

E é aí que entra meu emprego de Natal, num lugar que eu já amava profundamente, e passei a ter ainda mais carinho. Fiz amizade – o que quer dizer que alguém muito querido teve dó dessa pobre alma solitária e praticamente me adotou – com uma pessoa – importante ressaltar que não foram as vozes da minhas cabeça – que fez essa incrível boa ação de me levar pra sair – você tem amigos e uma vida social? Então adote uma pessoa 25+ e a leve para passear! Pois muito que bem, chegamos ao tal dia do karaokê, antecedido pela melhor coxinha de frango com catupiry do mundo (que, sim, é melhor que pizza). Lá, não só fui surpreendida pelos dons artísticos do dono, com o plus do seu enorme carinho e cuidado pelo salão, mas também fui pega de surpresa por poder, finalmente, interagir com a tal geração Z. Sim, meus queridos, vivi essa experiência geracional e tenho coisas a relatar.

Vira e mexe essa galera é foco de textões das gerações anteriores, principalmente – e não tenho nenhum dado concreto sobre isso, é mais uma percepção – da geração das pessoas na faixa dos quarenta. E, NÃO, isso não é sobre etarismo. É sobre choque de culturas – não o programa, do ponto de vista social mesmo. Essa galera que, pasmem!, nasceu nos anos 2000 e já são adultos funcionais está sempre na mira de comentários que envolvem coisas do tipo: quiet quitting, difíceis de trabalhar, não querem nada, preguiçosos, pronome neutro, etc. Todas ditas em contextos bem negativos, claro. E preciso dizer que eu era uma dessas pessoas, até entender que as minhas reivindicações são bastante similares a deles – exceto no trabalho, aí realmente tenho muito a aprender, especialmente no que tange a fazer coisas que não me competem e não me acrescentam. Também tenho que aprender a ser mais divertida e a viver mais pelo prazer das coisas. O que, sinceramente, é de fato o grande esquema das coisas, e muita gente só tem essa percepção láa no fim da vida, enquanto os queridos já nasceram sabendo de onde vieram e pra onde vão, se impondo e reconhecendo o seu lugar no mundo.

E um outro detalhe que achei crucial para escrever esse texto não foi nem no quesito trabalho, porque falamos pouquíssimo sobre isso. Não, o ponto principal foi sobre relacionamentos. E não o falar da pessoa-objeto-amoroso. Não, foi sobre as relações e a forma como elas se estruturam. Sobre como somos condicionados a estruturas totalmente patriarcais e incorporamos isso na maneira como nos relacionamos amorosamente com alguém. E a diferença crucial que pude perceber entre a minha forma de pensar e a das outras pessoas na mesa – todas, ou a maioria, com menos de 25 anos, foi perceber que, enquanto eu já estava ciente desses padrões nocivos enraizados na nossa sociedade, ainda tinha uma enorme dificuldade em admitir e até aceitar que muita coisa – ou tudo – deveria mudar; ao passo que, para eles, os zoomers, isso nem era mais uma questão. Eles enxergam as questões de gênero com muito mais fluidez e naturalidade que a minha geração, e também lidam com a não-monogamia de forma muito menos dramática. E não se enganem: eles não são bobos. Eles estão, sim, muito cientes da dificuldade em lidar com o ciúme, a falta de parceria, a não-monogamia ética. Eles sabem tudo isso, mas entendem que é muito melhor descontruir, ainda que doa, que silenciosamente adotar velhos padrões. E isso, meus amores, é uma vantagem e tanto.

E tem também o fato de que eles são lindos, porque são livres: na forma de pintar o cabelo, de se vestir, de falar, de se divertir. Nesse ponto vocês já devem ter adivinhado que a maior parte do público do karaokê é justamente essa galera no inicinho dos vinte e poucos. Minha amiga já tinha me falado que a maior parte do público de lá era LGBTQIAPN+. Mas na minha cabeça isso colocava pessoas na casa dos trinta. Qual foi a minha surpresa em perceber que todo mundo lá era super, super jovem. E que embora seja muito importante cada letrinha da sigla, parece que, para eles, isso vai se tornar cada vez menos relevante. E não porque não deve ser falado e/ou discutido, ao contrário. Mas porque para eles já está claro algo que eu e meus amigos precisamos ler trocentos livros pra descobrir: que sexualidade é fluida mesmo. Que nada é preto no branco, e que podemos nos identificar ou flanar por várias siglas antes de adotarmos uma. Ou, mais legal ainda, nem isso. Porque tá tudo bem.

Eles também são muito mais corajosos do que jamais fui. E pelo menos no pequeno recorte que tive naquela noite, também pude ver que eles não estão na vida pra levar desaforo pra casa. Sem jamais serem cruéis ou grosseiros, eles se retiram silenciosamente de situações nocivas e pulam logo pra outra. Vocês, meus caros leitores millennials, podem imaginar?

Infelizmente, acho que eles ainda vão sofrer muito pagando caro a conta da saúde mental. Pode soar extremamente condescendente da minha parte, e espero mesmo que eles tenham força para se imporem. Nos pronomes que desejam ser tratados, na forma como lidam com o trabalho, no respeito amoroso com o outro, na decisão de sair de situações tóxicas mesmo que envolvam familiares. Mas talvez seja isso que a idade nos dê, mesmo que um pouquinho – e não, não é sabedoria: é experiência. O mundo é duro e tortura sonhos, pessoas sensíveis, sem medo de ser diferentes. Acho que eles vão ter em comum com a minha geração altos usos de antidepressivos, muita terapia e um humor levemente autodepreciativas. Mas, caramba, eles vão saber muito mais sobre o mundo. Suas referências de literatura vão ser os clássicos, sim, mas serão também clássicos orientais, leitura em quadrinhos, grandes nomes da literatura japonesa - que só fui começar a ler agora. Deus me livre envelhecer e cair no erro de não saber conversar com quem vem depois de mim. Temos muito a aprender uns com os outros, e fazer piada com a vontade de mudança dos mais jovens é mesquinho e burro.

É claro que eles não são perfeitos. Eles não reconheceram de cara uma música da Lady Gaga – e isso, confesso, foi um susto (mais pra mim do que pra eles). Eles têm como nostalgia músicas que escutei em 2010. Entendo, também, o que a Jodie Foster deve ter sentido ao trabalhar com eles. Mas será que eles estão mesmo errados ao lutarem por formas de emprego menos nocivas? Mais justas? Por uma vida que seja mais hedonista? Ainda não sei como eles enxergam questões ambientais, e se estão dispostos a lutar por isso; também não sei opinar por essa ligação quase umbilical com a tecnologia; mas do pouco que pude perceber me pareceram jovens pessoas muito amigáveis, muito dispostas a colaborar e a trabalhar em equipe – mesmo que o uso excessivo de celulares possa sugerir o contrário – e muito prontas para se divertir. Sem medos sobre o que se desconstruir possa significar. Sabe por quê? Porque eles já entenderam o que tem depois da desconstrução completa. Não é que não sobra nada, como a minha geração temia. Não, o que sobra é vida.
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